invisível #1

éramos dois, antes.
só tu
agora
sabes a cor declinada
de quem vê o mundo pela frincha da porta.

......

Novembro 30 - 2013
tomas ketil

Será essa, a pedra de Antoine Roquentin?


I

Seria mais sensato ficar deitado, muito quieto (o mais quieto possível), descansar um pouco mais no fiapo escuro que resta desta madrugada; nada fazer, nada pensar, nada esperar… até porque pouco me separa do nada; estou longe, muito longe da noção que me tento reter de “tempo”: não separa nem significa nada. - Estou mais perto, muito mais perto do absurdo que é o absoluto, da finitude, da unicidade que pode conter (por exemplo) uma pedra.
Uma pedra (“dum lado (…) inteiramente seca, húmida e enlodada do outro”) tal como a que irei encontrar daqui a pouco, quando descer ao pequeno areinho de L., à pequena orla de pedras e um pouco de areia suja que os locais teimam chamar “a praia”. - Seria mais sensato não ir… mas teima a pedra que procuro há muito; tenho a certeza que será desta vez que tocarei na pedra que Antoine Roquentin deixou cair, antes de a tentar lançar ao mar “para as fazer saltar de ricochete”, como os garotos faziam, nesse sábado distante do mundo. Tenho a certeza…

Tenho a certeza “da pedra”, dessa pedra, do seixo, do agregado sólido e melancólico (foi nesse sábado que Sartre sonhou com Melancholia) que se transformou numa “espécie de náusea nas mãos”; encontrarei algures nesta “praia” esse pequeno seixo que não se deixa tragar pelo (nosso precário conceito de) tempo; “a pedra” ocorreu (algures) sedimento, textura, paciente forma em decomposição… e mais tarde, (também algures, talvez aqui em L.), confundiu-se com o mar, segundo Antoine Roquentin. - Com o mar, nunca com o tempo: - O tempo não se move, não se entrega, não planeja; o tempo não significa nada,

e pouco me separa do nada ou da finita sensação de absoluto…
e como é absurdo o absoluto; seja!


II

Ei-la, a estranha palavra “pedra”! – Será essa a pedra de Antoine Roquentin?

......
Abril, 4 – 2018 (rascunho/original, não revisto)
t. ketil

[enquanto escrevo escuto “And In The Endless Pause There Came The Sound Of Bees”, Jóhann Jóhannsson]


exercício/poema I

enquanto ardem
estão vivas
as naturezas mortas

novembro, 25 - 2013
t. ketil

“uma janela uma luz acesa do outro lado”(*)


(para Adriana Godoy)

A quem interessará? Amanhã deixarei esta pequena cidade, L., e tomarei o comboio para outra ainda mais pequena, onde não ficarei mais que uma outra noite, e depois outra, outra cidade, e depois outra… até chegar a Barrowby. - A quem interessa ou interessará? Não me perturba a resposta, não se turva a vista; ainda escrevo, durmo, caminho, sorrio (por vezes choro; a idade já me permite essa fraqueza infantil, de novo), respiro … que importa? – Que importa, a quem interessará que esta noite húmida e fria (singularmente iluminada na noite escura do Sul) se me entranhe no corpo, se


“duas taças de vinho quase cheias
os pés no chão e pálidos
uma janela uma luz acesa do outro lado”(*)

da rua, são esta rua? - Aqui e no outro lado.
Aqui, imagino Adriana e se presente, brindaríamos: 
- Aqui discutiríamos um mar, um oceano ou outro ainda mais remoto. Aqui, nesta pequena cidade (L.) escutaríamos os ruídos e rumores dos prédios vizinhos, o som distante duma estrela ou outra, presentes, sabendo que de uma forma ou de outra, todos somos personagens secundários duma história que nunca será contada… senão por nós, para nós, neste afecto (separado pelo tamanho dum atlântico, tão atlântico), que nos basta – e isso é suficiente

é-me suficiente, e no entanto… a quem interessará? – A quem interessará esta noite, este século melancólico, este modesto quarto de pensão, esta varanda debruçada para uma avenida que penso ser a principal, nesta cidade… esta cidade, esta taça de Maison Champy barato, esta melodia [parece-me escutar, quase num sussurro vindo de longe, Blind W. Johnson murmurando Dark Was the Night, Cold Was the Ground; parece-me improvável, mas que importa?], este canto agradável, estes carros que iluminam as ruas, sempre os mesmos, errando sem destino como que adiando o regresso a casa, mas que importa? A quem interessará senão aos que conhecem esta cidade melhor que eu?
é-me suficiente, estar aqui
agora, tão perto ou longe do olhar imaginário de Adriana (tanto faz!), esta noite nesta cidade; é-me suficiente o seu poder para desenhar no ar o mundo que imaginou ainda criança: eram, na sua mão, os seu dragões, monstros e duendes, hoje poesia…

hoje, aqui e
de uma forma ou de outra

brindamos às verdades, às mentiras nossas do nosso cada dia, do nosso cada país que trazemos por corpo; a quem [senão a nós, “acompanhando o blues num inglês ruim”(*)], a quem (senão a mim) interessará o meu regresso a Barrowby?
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abril, 01 - 2018 
t. ketil

(*) do poema “dessas noites em que estava lavando pratos” (Mil Noites e Um Abismo), Adriana Godoy
(**) original, não revisto

Quatro da tarde no Café Mably II



Faltarão quantos minutos para as quatro da tarde? Cinco, dez… um pouco mais, um pouco menos? - Confirmo de relance, mas de olhar firme, no relógio excessivamente gigante para um minúsculo café como o Mably II: um pouco menos.

A próxima pessoa que entrará (creio que não me enganarei) será Lisa ou mais provavelmente a melancólica Annie, que hoje trará o seu casaco de lã muito negra (ameaça chover; este vento sul sudoeste raramente falha), uma camisola de gola alta açafrão e os mesmos jeans azul ardósia gastos. Uma ténue linha de sorriso triste no rosto será o adorno do dia para Annie.  - Descerá suavemente, sem pressa, os quatro largos degraus que separam a rua e térreo do Mably, dirá boa-tarde, esgotado, quase inaudível. - Se a nesga de luz da rua ainda iluminar o seu lugar (sempre reservado, como se o tempo e o espaço tenham pactuado desde sempre para que assim seja), deslizará instintivamente a mão pela sua metade da mesa (um grão de pó, alguma cinza da fábrica Mercier esquecida no tampo?), olhará em redor, com os seus pequenos olhos de toupeira perscrutando alguma mudança e só então se sentará. A meia de leite e o croissant com manteiga e fiambre demorarão menos de três minutos, automáticos a chegar à sua mesa; tempo suficiente para pousar na mesa a pequena carteira lima (um lima antigo; prenda duma tia falecida há muito?) e o livro que lhe acompanha há dois meses (talvez um pouco mais… três?) – Monte dos Vendavais de Brontë (pelo menos assim me parece, visto deste lugar que ocupo todos os dias), que até à tarde de ontem não me aparentava ter ido além da página oitenta; um pouco menos que um quarto antigo do volume desbotado, creio.

Olhará para o exterior demoradamente, pela janela que recorta um pouco dos pátios interiores, sem vida aparente (por vezes uma criança sem pressa, triste… mais raramente, um desordeiro nocturno procurando uma nesga de luz ou uma doméstica apressada na rotina, presa na rotina)… e retoma as linhas do dia anterior: “Serei obrigada a estar junto de ti? Perguntou ela com crescente irritação – Ganho alguma coisa com isso?... Sabes conversar?... Uma criança ou um mudo não fariam mais para me distrair”.

Parará a leitura, olhará de novo em redor (como eu, quantos de nós estarão neste pequeno café a olhar de relance o relógio excessivamente gigante? – pouco menos de dez minutos para as cinco…), regressará absorta ao antigo livro como se uma malha, uma ponta, uma linha tivesse parado no tempo: “Além disso, mentiu, sabendo que mentia” e a sua respiração não se alterará; nunca se altera, como um se se tratasse dum precioso pormenor numa pessoa singularmente inalterável.

Não muito longe da mesa Annie, de relance observo, como uma rotina paciente, quase radiante; - Depois de muito observar já não consigo ver uma pessoa (como Annie, Lisa ou empregado de mesa… Arnaldo?) como um todo mas apenas nos detalhes; detalhes que depois de muito somados até podem fazer um todo, singularmente inalterável.

Eu, pacientemente observo.

29 Março 2018