“uma janela uma luz acesa do outro lado”(*)


(para Adriana Godoy)

A quem interessará? Amanhã deixarei esta pequena cidade, L., e tomarei o comboio para outra ainda mais pequena, onde não ficarei mais que uma outra noite, e depois outra, outra cidade, e depois outra… até chegar a Barrowby. - A quem interessa ou interessará? Não me perturba a resposta, não se turva a vista; ainda escrevo, durmo, caminho, sorrio (por vezes choro; a idade já me permite essa fraqueza infantil, de novo), respiro … que importa? – Que importa, a quem interessará que esta noite húmida e fria (singularmente iluminada na noite escura do Sul) se me entranhe no corpo, se


“duas taças de vinho quase cheias
os pés no chão e pálidos
uma janela uma luz acesa do outro lado”(*)

da rua, são esta rua? - Aqui e no outro lado.
Aqui, imagino Adriana e se presente, brindaríamos: 
- Aqui discutiríamos um mar, um oceano ou outro ainda mais remoto. Aqui, nesta pequena cidade (L.) escutaríamos os ruídos e rumores dos prédios vizinhos, o som distante duma estrela ou outra, presentes, sabendo que de uma forma ou de outra, todos somos personagens secundários duma história que nunca será contada… senão por nós, para nós, neste afecto (separado pelo tamanho dum atlântico, tão atlântico), que nos basta – e isso é suficiente

é-me suficiente, e no entanto… a quem interessará? – A quem interessará esta noite, este século melancólico, este modesto quarto de pensão, esta varanda debruçada para uma avenida que penso ser a principal, nesta cidade… esta cidade, esta taça de Maison Champy barato, esta melodia [parece-me escutar, quase num sussurro vindo de longe, Blind W. Johnson murmurando Dark Was the Night, Cold Was the Ground; parece-me improvável, mas que importa?], este canto agradável, estes carros que iluminam as ruas, sempre os mesmos, errando sem destino como que adiando o regresso a casa, mas que importa? A quem interessará senão aos que conhecem esta cidade melhor que eu?
é-me suficiente, estar aqui
agora, tão perto ou longe do olhar imaginário de Adriana (tanto faz!), esta noite nesta cidade; é-me suficiente o seu poder para desenhar no ar o mundo que imaginou ainda criança: eram, na sua mão, os seu dragões, monstros e duendes, hoje poesia…

hoje, aqui e
de uma forma ou de outra

brindamos às verdades, às mentiras nossas do nosso cada dia, do nosso cada país que trazemos por corpo; a quem [senão a nós, “acompanhando o blues num inglês ruim”(*)], a quem (senão a mim) interessará o meu regresso a Barrowby?
....
abril, 01 - 2018 
t. ketil

(*) do poema “dessas noites em que estava lavando pratos” (Mil Noites e Um Abismo), Adriana Godoy
(**) original, não revisto

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