Faltarão
quantos minutos para as quatro da tarde? Cinco, dez… um pouco mais, um pouco
menos? - Confirmo de relance, mas de olhar firme, no relógio excessivamente
gigante para um minúsculo café como o Mably II: um pouco menos.
A próxima
pessoa que entrará (creio que não me enganarei) será Lisa ou mais provavelmente
a melancólica Annie, que hoje trará o seu casaco de lã muito negra (ameaça
chover; este vento sul sudoeste raramente falha), uma camisola de gola alta
açafrão e os mesmos jeans azul ardósia gastos. Uma ténue linha de sorriso
triste no rosto será o adorno do dia para Annie. - Descerá suavemente, sem pressa, os quatro
largos degraus que separam a rua e térreo do Mably, dirá boa-tarde, esgotado,
quase inaudível. - Se a nesga de luz da rua ainda iluminar o seu lugar (sempre
reservado, como se o tempo e o espaço tenham pactuado desde sempre para que
assim seja), deslizará instintivamente a mão pela sua metade da mesa (um grão
de pó, alguma cinza da fábrica Mercier esquecida no tampo?), olhará em redor,
com os seus pequenos olhos de toupeira perscrutando alguma mudança e só então
se sentará. A meia de leite e o croissant com manteiga e fiambre demorarão
menos de três minutos, automáticos a chegar à sua mesa; tempo suficiente para
pousar na mesa a pequena carteira lima (um lima antigo; prenda duma tia
falecida há muito?) e o livro que lhe acompanha há dois meses (talvez um pouco
mais… três?) – Monte dos Vendavais de Brontë (pelo menos assim me parece, visto
deste lugar que ocupo todos os dias), que até à tarde de ontem não me
aparentava ter ido além da página oitenta; um pouco menos que um quarto antigo do
volume desbotado, creio.
Olhará
para o exterior demoradamente, pela janela que recorta um pouco dos pátios
interiores, sem vida aparente (por vezes uma criança sem pressa, triste… mais
raramente, um desordeiro nocturno procurando uma nesga de luz ou uma doméstica
apressada na rotina, presa na rotina)… e retoma as linhas do dia anterior:
“Serei obrigada a estar junto de ti? Perguntou ela com crescente irritação –
Ganho alguma coisa com isso?... Sabes conversar?... Uma criança ou um mudo não
fariam mais para me distrair”.
Parará a
leitura, olhará de novo em redor (como eu, quantos de nós estarão neste pequeno
café a olhar de relance o relógio excessivamente gigante? – pouco menos de dez
minutos para as cinco…), regressará absorta ao antigo livro como se uma malha,
uma ponta, uma linha tivesse parado no tempo: “Além disso, mentiu, sabendo que
mentia” e a sua respiração não se alterará; nunca se altera, como um se se
tratasse dum precioso pormenor numa pessoa singularmente inalterável.
Não muito
longe da mesa Annie, de relance observo, como uma rotina paciente, quase
radiante; - Depois de muito observar já não consigo ver uma pessoa (como Annie,
Lisa ou empregado de mesa… Arnaldo?) como um todo mas apenas nos detalhes;
detalhes que depois de muito somados até podem fazer um todo, singularmente
inalterável.
Eu, pacientemente observo.
29 Março
2018
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